Trilha sonora

terça-feira, 23 de outubro de 2012

O REVERSO DO DESTINO


(Jéssica Lutz - uma criança desaparecida...)


CAPÍTULO 3

             No seu primeiro dia de folga, Laura foi ao encontro de Leo, mas disse a Sandra que iria visitar parentes no fim de semana. Os namorados se encontraram no quarto de pensão onde ela morara até começar a trabalhar na casa dos Lutz. A pensão ficava situada em um beco horroroso no bairro da Cidade Nova, Centro do Rio; era preferência de prostitutas e outros tipos infames. Laura preferiu manter o aluguel do quarto, pois somente ali poderia se encontrar com Leo, já que este morava com os pais e não gostava de pagar motéis. Dizia que não gostava desses tipos de lugares para encontros, mas não a convencia. No fundo, Laura sabia que ele não gostava de ter despesas com mulheres; um projeto de gigolô. Porém, ela não insistia; desde que tivessem um local onde pudessem transar, para ela, estava ótimo. Laura nunca se apaixonara por ninguém, não se importava com o lugar, mas sim com o quem e com o quê. E ele era bom no que fazia. Não era excelência, mas dava conta do recado.
            Ela agora estava livre daquelas roupas comportadas que vestia para agradar os patrões. Trajava uma blusa preta decotada com calças compridas e justas da mesma cor, quando foi abrir a porta para Leo. Laura bebia cerveja no gargalo e ficou em pé, parada sob o batente da porta, olhando para o rapaz de cabelos lisos e castanhos claros que ali estava. Ambos ficaram se estudando por alguns instantes, quando ela começou a lamber de forma lasciva o gargalo. Seu olhar fervia e ele sentia a vibração da amante. Laura era muito fogosa, sedutora... e experiente. Leo costumava dizer que a namorada era um verdadeiro animal copulando... Ela não tinha inibições e poderia, sem exageros, fazer corar um profissional do sexo.
            – E aí? – ela perguntou, lambendo mais a garrafa. – Não vai entrar?
            Ele a empurrou violentamente para dentro do quarto, em direção à cama, e atirou-se sobre Laura; ela abria as pernas e ria alto.
            – Agora...ele murmurou, muito excitado, abrindo o zíper de suas calças e tateando a parceira. – Sua puta... está sem calcinhas, não é?
            – Putas não usam calcinhas, elas atrapalham – disse e gargalhou.
            Então, em meio a bofetadas, arranhões e puxões de cabelos, eles fizeram sexo e sequer se lembraram de trancar a porta.

***

            Na folga da babá, Marcelinho ficava na companhia de uma acompanhante de fim de semana. E Sandra parecia não estar se divertindo tanto quanto Laura. Pelo contrário, jantava em um restaurante elegante no bairro de Ipanema, ao lado do esposo e de um casal de amigos, porém seus pensamentos vagavam. A conversa com o policial Douglas vinha à sua mente durante todo o tempo. Mal tocava na comida, que já gelava no prato, o que chamou a atenção dos amigos. Pretendendo disfarçar seu humor depressivo, o que não lhe era comum, Sandra pediu licença para ir ao toillette, sendo acompanhada pela inconveniente Margareth. Esta era a esposa de Raul, sócio de Werner, e era uma mulher ridiculamente efusiva, fofoqueira e fútil. Muito mais do que ela própria que não teve como impedir que a outra mulher a seguisse.
            Sandra estava muito bem maquiada, mas dava pra perceber seu abatimento, já que as olheiras insistiam em aparecer. Alheia a tudo isto, Margareth iniciava o que mais parecia ser um monólogo, enquanto a amiga, sorrindo discretamente, entrava em uma das divisórias do banheiro. Só queria pensar, respirar fundo e nem mesmo o tom de voz monótono de Margareth a impediu:
            – Querida, eu te falei da última reunião na casa da minha irmã? Deixa eu te contar quem apareceu por lá, você não vai acreditar...
            E a esposa de Werner começava a ouvir novamente a voz grave do inspetor de polícia que a recebera logo após sua sessão se ginástica, no primeiro dia de trabalho da nova babá:
            – Eu estou estudando o caso agora, não fui eu quem começou as investigações, mas...
            Pelo tempo que passou, será que a Jéssica ainda está viva? – ela o interrompeu, estava visivelmente tensa.
            Douglas manteve uma expressão preocupada; Sandra percebeu.
            Nada é impossível, mas é estranho que não tenham feito contato, nem pedido qualquer resgate.
            Na verdade, eles fizeram, sim.Ela abaixou a cabeça, encarando o policial em seguida.
            E por que vocês nunca contaram nada à polícia?
            Uma única vez...seus olhos se enchiam de lágrimas. – Foi para o meu telefone celular. Só que nunca mais entraram em contato. Disseram que se contasse a alguém, até mesmo para o meu marido, matariam a minha filha.
            E nem depois de tanto tempo, mesmo depois deles sumirem, a senhora procurou ajuda policial? Por quê?
            Eu fiquei apavorada! E pra ser sincera, como nunca mais fizeram contato... – A hesitação em continuar a explicação revelava terror. – Eu passei a não ter mais esperanças.
            E agora? Voltou a ter? – Douglas permanecia impassível, procurando reações suspeitas naquela mulher, embora lhe parecesse que ela realmente sofria.
            Não...
            A expressão de Sandra era séria.
            Então, por que está me contando isso agora?
            Porque tenho uma desconfiança. – Desolada, sacudia a cabeça e parecia confusa. – Eu recebi o telefonema na época e anotei o número. Depois que passei muito tempo crendo no pior, pedi a um amigo que checasse o número daquele telefone e ele me disse que a ligação partiu de um telefone público, da cidade de Recife.
            E qual seria a sua desconfiança?
            Na época do sequestro da Jéssica, o meu cunhado estava em Olinda, vagabundeando pra variar. – Referia-se ao irmão de Werner.
            O policial abriu mais os olhos, mas deixou-a prosseguir.
            – O Paulo sempre foi estranho, há anos usava drogas, nunca teve compromisso com ninguém, nem responsabilidades, enfim... é uma ovelha negra na família.
            Mas qual motivo ele teria pra sequestrar a própria sobrinha? Pelo pouco que sei, ele também tem boa situação financeira, ou estou enganado?
            Sandra parecia surpresa com o conhecimento do policial.
            Sim, ele tem dinheiro, mas o motivo seria outro – ela engolia seco e demonstrava ódio ao falar.
            Qual? – Douglas estava sentado agora com as pernas cruzadas, meio de lado e atrás da mesa, virando uma caneta esferográfica entre os dedos, porém atento.
            Antes de eu me envolver com o Werner, eu namorei o Paulo. Não era nada sério, nós saímos poucas vezes, mas ele ficou obcecado por mim. Depois que soube que eu estava grávida do Werner, enlouqueceu e prometeu se vingar. Não aceitou que eu o trocasse pelo irmão, muito menos que estivesse grávida do mesmo.
            E a sua prima? A primeira esposa do seu atual esposo?
            Ele gostava de jogar com as palavras.
            O que tem ela?
            Ela não teria motivos para querer que a menina sumisse?
            Talvez... Eu cheguei a acreditar nisso... Mas acho que ela não seria capaz... – Sandra percebia o olhar repressor do policial, sabia que não era bem vista por ter traído a prima.
            Ela também não imaginava que alguém de seu próprio sangue a traísse dentro de sua própria casa – Douglas disse e a mulher empalideceu. – Ela demonstrou estar muito ressentida quando prestou depoimento, segundo me informaram aqui na delegacia. E pouco tempo depois se matou.
            Eu sei que eu errei. Mas eu me apaixonei, oras!Orgulhosa, ela empinava o nariz.
            Ele ergueu as sobrancelhas, mas continuou calado.
            E o Werner não gostava mais da Marília – concluiu.
            Será que ela pensou dessa forma? Por que teria se matado, então? Remorsos? Teria se vingado na menina?
            Talvez, não sei. Mas não descarto o Paulo... – Cruzou os braços com impaciência.
            Eu não disse que descartava. Aliás, eu não descarto ninguém. Agora, quanto ao fato de sua prima ter cometido suicídio... será que não a envenenaram?
            Pelo que eu sei, não encontraram impressões digitais no vidro de veneno.Havia chegado aonde ele queria.
            Exato. Nenhuma impressão digital, nem mesmo a dela. O vidro estava limpinho.
            Logo?...
            A postura de Sandra agora era indiferente.
            – Por que motivos um suicida se preocuparia em apagar as próprias digitais? – Douglas questionou, encarando a esposa de Werner, que ficou boquiaberta e permaneceu sem resposta.
            Sandra foi despertada dessas lembranças pela voz de Margareth, impaciente com sua demora. Ela então saiu sorrindo da divisória do banheiro e limitou-se a responder um: Vamos, querida.

***

            No domingo à noite, Laura e Leo foram à Lapa, terra da boemia carioca e local atualmente frequentado por todos os tipos de pessoas, inclusive adolescentes. A diversidade de opções, especialmente bares, torna o local atrativo. Em um ambiente ao ar livre, muitas pessoas, geralmente acompanhadas por amigos, divertem-se ou procuram por prováveis relacionamentos afetivos ou sexuais, ocasionais ou mais sólidos.
            Leo escolheu um bar onde já estava acostumado a ir com Laura e eles começaram a conversar sobre o furto que ele intencionava concretizar com a ajuda da namorada.
            – Como foram esses três dias lá? – Ele mascava um chiclete, mas estava apreensivo.
            – Bem, acho que estão gostando de mim. O garoto está, com certeza.
            – Não sabia que você tinha jeito com crianças – zombou.
            – Nem eu – deu de ombros –, sorte a nossa, não é?
            – E a patroa?
            – Perua até o cu! disse com desprezo. – Eu pensei que ela fosse a mãe do garoto, mas ela é tia. Quer dizer, é prima. Pasme: o marido dela foi casado com a sua falecida prima e esta sim era a mãe do menino.
            Leo olhava sério para a mesa e questionou:
            – E como você soube disso?
            – O menino me contou.
            Ela bebia uma cerveja gelada e lambia os lábios, que ainda estavam coloridos com o batom vermelho.
            – Você está conversando com ele?
            – Claro, ué! Eu sou a babá dele – respondeu com firmeza e, em seguida, perguntou com certa malícia no olhar.
            – Por quê? Por acaso, eu não deveria conversar com ele?
            Sei lá, é que ele já saiu te contando essas coisas... O moleque parece ser linguarudo, hein!?
            – Não. É que ele não tem com quem conversar.
            Laura se lembrava de sua infância, que também fora bastante solitária, fato este ignorado por Leo. Aliás, o namorado só sabia de fatos selecionados de sua vida. Jamais entregava toda sua história a quem quer que fosse. Não gostava de se revelar completamente, porque isso poderia deixá-la nas mãos de qualquer um. O segredo sobre certas coisas é primordial, um grande amigo havia lhe ensinado. Se alguém quer manter algo em segredo, deve dividi-lo apenas consigo mesmo, esta foi a lição que aprendera. Para ela, não existiam confidentes, pois estes sempre seriam delatores em potencial.
            Aliás, querido... – Seu olhar tornou-se pesado – por que você não me contou que o garoto é órfão de mãe? – Ela tomava mais um gole da cerveja, sem desviar os olhos.
            Por que eu deveria saber? – Leo se ajeitava na cadeira, desviando o olhar.
            Porque o motorista que saiu de lá era amigo do seu pai. Se ele contou sobre uma fortuna na casa, se você pediu para eu me empregar lá e encontrar as joias com base no que ele contou, é óbvio que ele teria passado informações sobre a família. Porra! – Laura bateu com a tulipa na mesa, demonstrando irritação.
            Ah, eu me esqueci – Leo não a convencia. – Desculpa.
            Cuidado, gato...
            Laura se recostou na cadeira, encarando o namorado e deixando-o desconfortável.
            – Eu não gosto que me enganem e muito menos que me usem!
            Que paranoia, mulher! – retrucou, elevando o tom da voz, mas ela não se abalou e simplesmente sorriu. Estava incomodada com a atitude dele.
            O aviso foi dado, gatinho...
            – E aí, a cobertura é muito grande? – Ele queria sair pela tangente e ela resolveu deixar o assunto morrer; pelo menos naquele momento.
            – Imensa!Agora falava com prazer. – Ai, eu me perco ali dentro! – Ela jogava a cabeça para trás num gesto de êxtase e quando voltou à posição normal, olhou para o lado direito e viu um homem de cabelos compridos, ondulados e escuros, observando-a. Estava com um grupo de motoqueiros e usava roupas pretas de couro; parecia ter uns quarenta anos no máximo e tinha um aspecto meio latino, até mesmo zíngaro. Assemelhava-se fisicamente a algum artista famoso, mas Laura não conseguia se lembrar de qual, e isto a instigou a olhar mais em sua direção.
            – Já começou a procurar o cofre? – Leo perguntou e Laura disfarçava para que ele não visse o homem charmoso paquerando-a.
            – Sim, mas vamos ter que manter a paciência. Tem uma governanta lá que é carne de pescoço”. A vaca vive me vigiando.
            Olhou novamente para o lado e o homem continuava com os olhos fixos nela, enquanto conversava com outros motoqueiros. Tinha um sorriso bastante sedutor e ela, por sua vez, estava provocante e tinha consciência disto. Nem parecia a recatada e doce babá. Aliás, não era nada daquilo mesmo, nunca fora. Depois de ter transado com Leo, tomara um banho e mudara de roupas; trajava agora um vestido preto não muito curto, mas justo e sexy e que favorecia seu corpo bem feito. Os cabelos estavam soltos; parecia uma pantera. E aquele homem parecia gostar do tipo de mulher que ela retratava.
            – O que foi? – Leo percebeu que ela estava distante.
            – Nada, por quê?
            – Você está meio distraída – disse ele e viu o imponente motoqueiro olhando para sua namorada. Esta ficou preocupada, pois tudo lhe dava motivo para arrumar brigas.
            – Ah, sua vadia... já tá caçando macho, né? Na minha cara?
            – Se você começar com a palhaçada de sempre, eu te largo aqui sozinho.Ela olhou furiosa para ele, mas disfarçava com um sorriso, pois o belo homem continuava a observá-la.
            – E se aquele babaca continuar a te olhar, eu vou partir pra cima dele! – Leo segurava com força a mão de Laura sobre a mesa.
            – Você já viu com quantos amigos ele está?
            Leo olhou ao redor e sentiu que não era a hora de arrumar encrenca.
            – Quer levar uma surra, é? – Laura falava quase rangendo os dentes.
            – Vamos embora daqui.
            Leo olhou para o outro homem que o desafiava cinicamente com o olhar e parecia não se incomodar com o seu comportamento agressivo. Pagou ao garçom e puxou a moça pelo braço, pois queria sair logo dali. Ele sabia que estava em desvantagem e detestava ter de admiti-lo.
            Após se afastarem do ambiente, ambos circularam bastante, encontraram alguns conhecidos e voltaram para o quartinho de Laura, esbarrando em alguns bêbados inofensivos sentados na entrada da pensão decadente. Ela bebera razoavelmente, a imagem daquele homem não saía de sua cabeça e não sabia por quê. Ele parecia ter dinheiro, pelo seu porte, pelas roupas e acessórios que usava. Seu grupo de amigos também. Percebia-se que eram pessoas de boa situação financeira. Contudo, seu jeito era meio selvagem. Aquele homem era diferente do namorado que era um rebelde sem causa, como a própria mãe dizia. Leo era um marginalzinho, esta era a verdade. Já aquele homem, tinha algo a mais.
            Laura olhou para o namorado, este já menos irritado, e puxou-o até o quarto. Ele queria ir embora, tinha umas coisas para resolver, mas ela não quis saber. A única coisa que ele tinha para resolver naquele momento era fazê-la se esquecer daquele sedutor incomum que a devorava com os olhos horas antes. E que, infelizmente, não veria mais.

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