Trilha sonora

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

1º CAPÍTULO DE ORGASMOS FATAIS PARA DEGUSTAÇÃO


CAPÍTULO 1

Às dezoito horas de uma quinta-feira do mês de fevereiro de 2010, Mary Alves, após chegar do trabalho, tocou a campainha de seu apartamento situado no Grajaú e ficou aguardando que sua filha mais velha viesse abrir. A empregada estava de folga e Mariana, que tinha acabado de se formar na faculdade de Direito, se recuperava de uma cirurgia estética nos seios na casa de sua mãe, com quem sempre morou.
Mary tocou impacientemente mais duas vezes, pois estava realmente cansada, louca para tomar um banho e se deitar. Ela procurou a chave na bolsa, imaginando que Mariana estivesse dormindo, o que era comum nos últimos dias, em razão dos remédios receitados por seu médico para evitar dores no local da cirurgia. Porém, quando ela enfiou a chave na fechadura a porta se abriu automaticamente, antes mesmo dela iniciar o giro, o que a deixou inquieta. Mariana não deixava a porta destrancada, ela tinha medo de assaltos.
A porta principal realmente estava aberta e ela sentiu um arrepio gelado, pois chamou Mariana e ninguém respondeu. Devagar, Mary entrou na sala de estar, grande e bem mobiliada. Instintivamente, ela olhou assustada para um dos sofás que ficava de frente para a porta principal — um móvel grande e pesado. O ambiente parecia estar em ordem, mas Mary sentia o coração disparar à medida que se aproximava do móvel avantajado. Caminhou pela lateral deste, para poder olhar atrás e não pôde conter o grito de pavor:
— Mariana, não! Socorro... a minha filha! Socorro!
Os gritos alucinantes e roucos logo atraíram vizinhos, que ao entrarem naquela casa, se depararam com Mary em estado de choque, ajoelhada sobre o corpo ensanguentado de Mariana. Todos ficaram perplexos com o que viram e tentavam afastá-la dali, mas a mulher não soltava o corpo de sua bela filha — uma morena clara, de 32 anos, alta, tipo “mulherão”, com cabelos compridos e escuros e que agora ali jazia inerte. Ela trajava um vestido simples sem mangas e na altura dos joelhos, de cor bege, folgado no corpo e sem muitos detalhes; estava gravemente ferida, o corpo banhado em sangue tingia o tecido fino e delicado, as sapatilhas rasteiras também estavam vermelhas, indicando que seu sangue jorrava em abundância. Seus olhos abertos e frios davam uma sombria sensação de que ali não havia mais vida.
Porém, Mariana conseguiu forças para murmurar algo à mãe, que embora estivesse em prantos e prestes a perder seus sentidos, ao ouvir a voz da filha já moribunda, pareceu recuperar parte de sua racionalidade e disse:
Sim, meu amor, eu estou aqui. Fica quietinha, a ambulância está chegando e você vai ficar boa...
— Foi ela, foi ela... — sua voz saía como um sopro.
Mary arregalou os olhos, sem entender bem o que ouvia e olhou ao redor, percebendo aquelas pessoas dentro de sua casa; estavam fazendo ligações diversas, para hospitais, polícia, enfim... Ela estava no meio de um caos. Então, aproximou bem o ouvido dos lábios da filha, para entender o que a mesma tentava lhe dizer. A voz de Mariana estava fraca, muito fraca... o som saía estranho.
— Ela quem meu amor? — as lágrimas vinham com intensidade. — Fala, por favor.
— Ela... — Mariana suspirou e sua respiração parou.
Mary gritou desesperada e então, só percebeu um homem de branco — que posteriormente soube ser um enfermeiro — aplicando-lhe um sedativo que a deixou praticamente fora de si. Alguém já havia chamado o Corpo de Bombeiros e um dos socorristas atendeu a desolada mãe, enquanto todos aguardavam a chegada da polícia.
Logo, policiais militares chegaram e trataram de isolar o local, afastar os inconvenientes curiosos e arrolar testemunhas potenciais, tais como o porteiro, vizinhos mais próximos, bem como identificar e qualificar a vítima e sua mãe. Estavam procedendo assim, quando dois policiais civis da Delegacia de Homicídios e dois peritos chegaram juntos para assumirem o controle da situação. Um dos agentes policiais, um homem de meia-idade, moreno claro, de cabelos escuros e lisos, altura mediana e semblante sério, se aproximou do policial militar que protegia o local e se apresentou, indicando também seu colega de trabalho, um policial mais jovem. Para aquele policial militar era evidente que o segundo tinha bem pouco tempo de profissão, ao contrário de seu colega de voz grave e firme:
Eu sou o inspetor Douglas e este é meu colega Luiz. Nós somos da Delegacia de Homicídios.
Todos se cumprimentaram cordialmente e Douglas, experiente em investigar casos de homicídio, iniciou suas perguntas ao policial militar, que se apresentou como Sargento Mota.
— Quem era a moça? — Douglas perguntou.
— O seu nome era Mariana Alves Andrade e tinha 32 anos. Parece que ela estava passando uns dias na casa da mãe — ele apontou Mary no sofá. — Ela se recuperava de uma cirurgia.
Tinha algum problema de saúde? — interrompeu o inspetor veterano, enquanto examinava o local.
— Não — riu o Sargento. — Ela colocou próteses de silicone, mas pelo jeito alguém não gostou e furou suas “bolinhas” novas. Ela tem ferimentos no peito. Parecem facadas, mas não encontramos a provável arma do crime ainda.
Foi a mãe quem encontrou o corpo? — Douglas observava a mulher quase inconsciente.
Sim. Mas na verdade a filha ainda estava viva. Um vizinho que estava perto ouviu quando a vítima sussurrou algo como: “foi ela, foi ela...”. Mas, ela morreu logo em seguida.
— Então, ela mencionou algo neste sentido antes de morrer? — Douglas olhava atentamente agora para o corpo da vítima, enquanto Luiz anotava freneticamente tudo o que via e ouvia.
— Sim. Desculpe-me a pergunta inspetor, mas onde está o delegado?
Pra variar não veio — Douglas deu uma risada discreta. — Mas nós estamos aqui, não estamos? Já telefonamos e pedimos a ele que se apresse... afinal, se ele ganha mais não é à toa, não é mesmo?
— Eu entendo inspetor — Mota riu e coçou a cabeça, analisando que as mentes mais brilhantes e os agentes mais atuantes na polícia não eram chamados de “doutores” e não tinham um salário tão digno quanto à função que exerciam.
Douglas pediu licença ao Sargento e dirigiu-se ao perito criminal, que procurava vestígios no local. Ele conhecia aquele perito, um bom profissional, pois já haviam trabalhado juntos. Isto era um fator facilitador para o policial.
O perito, conhecido como Nunes, logo acenou para Douglas e Luiz, exibindo um objeto acondicionado em um saco plástico.
Encontrou algo? O que é? — perguntou o interessado Douglas. Ele já começava a se envolver naquela ocorrência, que com certeza tiraria muitas de suas noites de sono. Aliás, isto sempre acontecia quando ele se via envolvido em investigações de homicídio como aquela.
— Isto estava no carpete, próximo ao sofá — Nunes explicou. — Parece ser uma pedra de anel quebrada, mas somente após a conclusão do laudo nós poderemos afirmar se é isto mesmo. Mas uma coisa é interessante: a vítima tem um ferimento no lado esquerdo do rosto, que pode ter sido causado por um objeto como este. Por enquanto estamos no campo das suposições.
Se isso for uma pedra de anel, ela poderia ter levado um soco? — Douglas raciocinava.
— Poderia sim, ou até mesmo ter levado um tapa com as costas da mão, o que me parece ser o mais provável — o perito fez um gesto com a mão, imitando o movimento. — Até porque, pelo que eu pude avaliar, ela levou cinco ou seis estocadas no peito, talvez facadas. Os ferimentos foram causados por instrumentos diferentes. — Nunes guardava o objeto apreendido.
— E tem mais: quem lhe causou esse ferimento no rosto deve ser canhoto... ou canhota.
Douglas ficou quieto e de repente um homem branco e alto, trajando terno e gravata, entrou no recinto, exibindo aos policiais seu distintivo. Era o delegado de polícia, que procurava esbaforido os seus subordinados.
— E aí, algo relevante? — perguntou o próprio.
— Parece que a vítima tentou falar para a mãe o nome de sua provável assassina — respondeu Douglas, enquanto complementava as anotações de Luiz.
— Assassina? — perguntou o delegado, um pouco surpreso. — Ela disse que foi uma mulher?
— Ela disse pra mãe que “foi ela” ou algo parecido. Mas ela não conseguiu prosseguir, faleceu em seguida.
Entendo — disse o delegado, não muito interessado no caso, já que precisou sair correndo do início de uma aula para comparecer no local daquele crime. Ele ministrava aulas de Direito Penal em uma conceituada universidade.
Mas já que estava ali, ele pretendia mostrar serviço. A autoridade aproximou-se de Mary, que estava sendo confortada por outra filha que acabara de chegar ao local e também estava muito emocionada. Sem o menor tato, ele disse:
— Senhora, eu sou o delegado Leandro, da Delegacia de Homicídios, e gostaria de lhe fazer algumas perguntas.
A filha de Mary, encarando-o ferozmente, tomou a frente e disse:
O senhor não está vendo que a minha mãe não tem condições de dizer o seu próprio nome? Ela chegou a casa após um dia de trabalho, deu de cara com a filha ensanguentada atrás do sofá, assassinada de forma brutal, está dopada até a alma e o senhor age como se nada estivesse acontecendo com ela? — o tom de voz da moça aumentava.
Douglas olhou para aquela cena e balançou a cabeça negativamente. Em seguida interveio:
— Doutor Leandro, a senhora Mary tomou remédios e não está em condições agora. Tenho certeza de que depois ela será a primeira a querer colaborar com as investigações.
Douglas olhou para a outra filha de Mary, que lhe agradeceu com um sorriso triste e respondeu:
— Eu posso ajudar em alguma coisa agora? Cheguei depois, mas... — ela se dirigia unicamente ao inspetor, enquanto o delegado se afastava contrariado.
Não vou enchê-la de perguntas agora, eu sei que este momento não é fácil. Por enquanto, eu só gostaria de saber algumas coisas sobre vocês — Douglas fez uma pausa. — Você também mora aqui? Sua mãe trabalha em quê, exatamente?
— Eu me chamo Isadora e sou a segunda de três filhas. Mariana era a mais velha e morava com a minha mãe e seu filho de 10 anos, o Felipe... — ela recomeçou a chorar de repente. — Nossa...  como nós vamos contar isso ao menino?
Seguiu-se uma pausa constrangedora, enquanto Isadora tentava recompor-se. 
Depois, Douglas perguntou:
— Então, ela tinha um filho?
— Sim, ela era mãe solteira. O Felipe está na casa do pai, passando alguns dias. A Mariana tinha um relacionamento amistoso com o pai do meu sobrinho. Na verdade, a minha irmã estava praticamente morando com o atual namorado. Ela ficava uns dias aqui, outros com ele e estava se acostumando com a nova rotina. Minha mãe é contadora e chega sempre do trabalho por volta das dezoito horas. Ela adorava a companhia da Mariana... Eu sou casada já há sete anos e minha irmã mais nova, a Ana, ela também mora com o marido.
Você tem o telefone ou o endereço do namorado da sua irmã?
No momento não, mas eu posso conseguir e passar para o senhor depois, tudo bem?
Está bem — ele anotou os dados que Isadora lhe fornecera.Muito obrigado Isadora. Eu vou telefonar para marcarmos uma oitiva na delegacia, tá bom?
A jovem acenou afirmativamente com a cabeça e Douglas retornou para falar com o perito.
Impressões digitais? — perguntou o próprio, aproximando-se do experto[1].
Como sempre, muitas. Provavelmente encontraremos também as da própria vítima e é certo que quem a matou limpou o local. E não há sinais de arrombamento na porta, nem de luta corporal, muito menos arrastamento do corpo. Logo, eu acredito que a vítima já estivesse atrás do sofá quando recebeu os golpes fatais.
— Não houve luta, a princípio, mas o que me diz sobre o ferimento em seu rosto? — lembrou Douglas.
Se ela foi realmente nocauteada, não houve luta. O assassino ou a assassina pode tê-la derrubado ou dominado e ela nem teve chance de se defender — o perito apontou para uma arca localizada atrás do sofá. — O corpo está caído entre aquele móvel e o sofá e em cima do primeiro vemos alguns analgésicos.
— Pelo jeito também, nada foi roubado, não é? — Douglas perguntou.
A princípio nada. Mas isto só a dona da casa poderá confirmar — disse Nunes e olhou rapidamente para Mary, que chorava exaustivamente.
Doutor! — Luiz chamava o delegado, que foi seguido por Douglas até o banheiro localizado em um corredor, logo após a sala. — Olha só isso aqui — revelou o policial novato, entusiasmado ao apontar a descoberta, um indício talvez: uma peruca preta, de tamanho médio, fios lisos e de corte reto, estava jogada no chão do banheiro.           O delegado precipitou-se e já ia pegar o objeto, sendo impedido a tempo pelo inspetor Douglas, que disse:
Doutor, cuidado para não alterar a cena do crime. O perito vai apreender a peruca e mandar para análise ainda — o policial já estava impaciente com as atitudes nada profissionais de seu superior hierárquico.
— Eu sei. Eu não ia pegar a peruca, não sou estúpido — disse a Autoridade, visivelmente aborrecido com o fato de um subordinado apontar os seus erros o tempo todo.
Por que o assassino viria até aqui jogar uma peruca no chão? — perguntou o inexperiente, porém dedicado e interessado Luiz.
Vai ver que ele ou ela queria lavar as mãos, né? — disse um policial militar, fazendo piada com a situação.
Um silêncio desconfortável seguiu-se, porém Douglas deu um sorriso para o homem que, apesar de ter sido hostilizado por sua brincadeira de mau gosto, poderia até estar certo.
— Doutor Leandro, nós vamos precisar ouvir o porteiro o quanto antes e apreender os DVDs de filmagens. Não sei se o senhor percebeu, mas o prédio possui câmeras logo na portaria — lembrou Douglas ao seu chefe.
— Claro, marque as oitivas para amanhã cedo. Eu estarei na delegacia às oito horas.
Ato contínuo, os peritos fizeram a remoção do corpo ao Instituto Médico Legal, o que provocou mais desespero na mãe. Aquela cena era massacrante demais. Os agentes saíram do local em seguida, enquanto Mary era amparada por Isadora. Alguns vizinhos estavam do lado de fora do apartamento e surgiam comentários diversos; era a curiosidade natural diante de um fato daqueles. Um casal de meia-idade entrou no apartamento ao lado e, segundo Douglas ficou sabendo ali mesmo, eles teriam sido os primeiros que acudiram Mary. Parecia que já conheciam a família da vítima há alguns anos.
O policial observou o corredor do prédio: era decorado com várias plantas ornamentais e tinha uma boa iluminação. Mas o que lhe chamou atenção, depois de toda aquela cena chocante, foram duas crianças. Na verdade, uma adolescente que aparentava ter, no máximo, quinze anos de idade e um garoto que deveria ter uns dez. Estavam os dois parados na porta do apartamento, cuja entrada ficava praticamente de frente para o apartamento de Mary. A garota segurava a porta com uma das mãos, obrigando o irmão a ir mais para trás. Ela o queria dentro de casa, dava pra perceber. Ambos estavam assustados e com os olhos arregalados. Douglas imaginou que deveria ser toda aquela movimentação e os comentários. A garota estava com os olhos vermelhos, provavelmente deve ter chorado bastante ao saber da morte de sua vizinha.
Ele gostava muito de crianças, sentiu pena e se aproximou dos dois, que o olharam com medo e ao mesmo tempo curiosos.
— Como é o seu nome? — ele perguntou à garota, enquanto o menino, que aparentava ser seu irmão, se afastava um pouco mais da porta.
— Aline — respondeu ela, meio sem graça.
Douglas reparou que na sua outra mão, a menina segurava uma câmera digital e parecia tentar escondê-la.
— Nome bonito — disse Douglas em um tom simpático.
Ela riu, mas logo o seu olhar se voltou novamente para o corredor, ainda repleto de pessoas. O corpo da vítima estava sendo levado em um saco plástico preto.
— Você mora aqui? — perguntou ele.
A menina acenou afirmativamente com a cabeça.
Mas, quando Douglas já ia fazer outra pergunta à jovem, uma mulher de seus sessenta anos, cabelos grisalhos e óculos de grau pesados, passou por ambos e entrou no apartamento. Ela era avó dos dois e começou a brigar com a neta:
Deixa de ser fofoqueira, Aline! — esbravejou ela, pedindo licença ao policial e puxando a neta para dentro. — Desculpe policial, eles são muito curiosos.
— Eu só estava conversando com ela. A menina está triste. A senhora é parente dela?
A mulher olhou com mais atenção para a neta, percebendo o seu olhar cabisbaixo.
— Eu sou avó dos dois. Ela gostava muito da Mariana, mas tem uma mania muito feia, ela e o irmão, de ficarem vigiando a vida alheia. Já levaram até uma surra da mãe por causa disso.
Douglas observou Aline, que agora estava sentada no sofá de sua sala, com o olhar meio distante e as mãos sobre sua câmera. O irmão estava deitado sobre suas pernas.
— Eles ainda são muito novos, senhora — disse Douglas. — Dá um desconto pra eles.
— Sim senhor — a mulher deu um meio sorriso e já ia fechando a porta, quando Douglas lhe fez outra pergunta:
— Seus netos chegaram agora da escola?
— Não, eles estudam de manhã. Eu fui ao mercado e os dois ficaram em casa. Eles ficam vendo televisão, brincando no videogame... essas coisas.
Ah... entendo. Não se esqueça de orientá-los a trancarem sempre a porta. Deu pra ter certeza de que não existe mais segurança em lugar nenhum, não é mesmo? — ele arregalou os olhos e a mulher acompanhou o gesto.
— Claro, o senhor tem razão. Muito obrigada.
— Não foi nada — Douglas deu um aceno para a vizinha de Mary e saiu olhando para os lados, para o chão... nem mesmo o teto escapava. Ele sentia uma forte pressão no peito e não era mal-estar físico, pois o charmoso policial gozava de excelente saúde. Era sua intuição querendo lhe dizer que aquelas paredes ainda tinham muito a lhe contar.


[1] “Experto” com “X” é sinônimo de “perito” e não se confunde com “esperto”. Em Inglês, “expert”.